Os dias são outonos: choram...choram... Há crisântemos roxos que descoram... Há murmúrios dolentes de segredos... Invoco o nosso sonho! Estendo os braços! E ele é, o meu amor, pelos espaços, Fumo leve que foge entre os meus dedos!

-Florbela Espanca-

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Núpcias

Fecho o teu requeijão, vou pra cama, como tua banana porque também é minha, nosso balde de champagne virou lixo de pia, lembrou-me de nossas núpcias; estávamos cansados, o vestido era pesado, encontraríamos um colchão a pouco e se tornou a muito; você pulou a enxurrada deixou cair a chave da casa, estávamos trancados na garagem as 2 da manhã, sem telefones, não sabíamos ainda se o nome do vizinho era Milton ou Nilton, do portão víamos nosso objeto brilhante através da água indo embora aos poucos, você gritou a todo esforço “Seu Nilton” mas era Milton, mas ele acordou, depois das primeiras frustrações casados, me fez tão feliz encontrar no quarto nosso futuro lixo de pia, outrora vendido no mercado como cachepô barato. Contamos nosso dinheiro de gravata e dormimos em paz.

Deixo os caramujos, a metafísica e o artesanato tosco

Noite, da janela te espiava como quem via a luz, você falava de metafísica apalpando as paredes, o conceito estava errado, mas o teatro era entorpecente, a você,  tudo o que te chamou atenção no meu seminário foi a minha blusa xadrez. Eu já estava tão apaixonada que não houve informação que eu pudesse reter ou discordar. Logo, tudo foi escuridão perto de você. Se eu tivesse uma filha tua, ela se chamaria Heroína, pois foi meu vício, falência, morte... Às vezes penso mesmo se não sou um fantasma preso em outra dimensão. Ou quem morreu foi você? Voltando à cama sozinha, lendo de uma só vez a biografia de Nietzsche, e era mais difícil com olhos inchados...
Você se sentou no sol escaldante com uma lupa na mão, porque queria me dar um presente único, exclusivo, nos gravou numa caixa de madeira, como se fosse uma ilustração bíblica de casamento, poderia ter lhe custado a visão, se fecho os olhos ainda posso ver: pombos, um burrico, um burrico com louro nas orelhas. Eu nunca a ganhei, mas sei onde você a guarda. A minha versão caixa-presente com tirinhas de jornal, se lembra? Melando as mãos com cola de madeira até ficar perfeita, e você nunca a ganhou também. Talvez elas guardem agora nossas lembranças, talvez não tenhamos mais lembranças físicas, não, tem a minha tartaruga de mármore, que tem me olhado de forma apedrejadora, aquela que tive que escolher...   
  Lembra do filme que precisava ser visto colorido, Você apagou tudo da sua memória? mas a TV naquele dia estava PB, você não quis mais assistir, mas disse que tinha a ver com a gente, preto e branco permaneceu.
   Você não tinha coragem às vezes, de atravessar a pedreira a nado, de dormir com a janela aberta, você era ridículo tantas vezes, quando dormiu com aquela Aloe vera, quando abraçou a namorada do seu amigo pensando que era eu, nós fomos ridículos juntos, tirando foto no rabo daquele dinossauro de cimento, roubando flores na rua, carregando móveis abandonados, tomando chuva de moto, não havia frio, nem escuridão, nem solidão. Você dizia que meu corpo à noite produzia espasminhos delicados, engraçados, você me chamava de boneca de cera, porcelana ou marfim? já não me lembro... Nós caçamos aqueles caramujos, lhe fizemos uma cama de cal, mas que desperdício de vidas para um amor que não vingaria. Deixe-me pela última vez indagar - O que foi verdade?